No
dia seguinte, às sete horas em ponto, a secretária do dr. Quincas
chamou "José Alves da Luz" e entrou o primo Zuzinha que tinha
ido fazer uma consulta apenas para ver se tinha alguma doença;
não sentia nada. Queria ir passear no Juazeiro do Norte, em Missões
Velhas e outras cidades do Vale do Cariri. Pediu para ser atendido
primeiro e eu cedi a vez. Não adiantou. O velho dr. Quincas mandou
que saísse e entrasse o paciente que tinha visto na noite anterior.
Entrei com o meu pai e ele refez todos os exames do dia anterior
e se fixou na ausculta do pulmão direito. Terminada a consulta
disse:
- Seu Doca, seu filho tem uma doença no pulmão que hoje já tem
cura, mas só em cidade grande, com muitos recursos que não existem
em cidades de interior, onde o médico tem que adivinhar as doenças
porque não dispõe de outros recursos além de sua intuição clínica
e do conhecimento das doenças do lugar. Medicina se faz na Bahia,
no Rio de Janeiro, e já temos bastante recursos em Recife e Fortaleza.
Teresina ainda necessita de algumas especialidades e de uma faculdade
de medicina. Vou passar apenas um remédio para verme e um fortificante.
Não adianta gastar dinheiro com remédios que não vão resolver
o problema do rapaz. Pode ficar sossegado que o seu filho não
vai morrer dessa doença. Ele é forte, já resistiu bem até aqui,
apesar de intoxicado com tanto remédio inútil para uma doença
que ninguém confirmou. O médico só deve receitar o medicamento
se tem o diagnóstico da doença. O menino está com as nádegas e
braços empedrados de tanta injeção. As veias estão endurecidas.
Mas, seu Doca, nada acontece por acaso. Esse rapaz ainda vai lhe
dar muita alegria e ajudar o senhor no futuro. Ele tem muita determinação
e inteligência. Terá um futuro brilhante. Essa provação é necessária
para que reafirme nele as convicções de nascença. As pessoas de
espírito forte, como ele, nunca perdem o rumo da vida e sempre
chegam aos seus objetivos. E é muito bom quando essa disposição
de luta é com a finalidade do bem. O senhor tem enfrentado muitas
dificuldades na vida, mas sempre vence e daqui para frente a vida
vai lhe ser mais favorável. Esta é a última fase das suas grandes
dificuldades. Ele vai ter que ir para uma cidade de mais recursos
e lá será confirmado o diagnóstico que concluí no exame, mas que
não tenho como comprovar, nem existem aqui os remédios que ele
vai precisar tomar. O senhor também não dispõe de recursos para
pagar o tratamento. Tem que procurar um destes centros médicos,
e tudo que lhe falei vai acontecer... Na hora certa.
- Quanto lhe devo, doutor, perguntou o meu pai?
- Seu Pedro, na minha idade o homem não precisa de muito dinheiro,
mas procurar fazer o bem. Tenho o suficiente para viver o resto
dos meus dias. Não vou necessitar de muito. Das pessoas de posses
recebo donativos para ajudar os que não podem. O senhor já gastou
muito, tem família grande e vai precisar levar o filho para um
grande centro. Vai precisar de todo o dinheiro que tem e de muito
mais. Portanto, não leve a mal. Não vou lhe cobrar nada nem permitir
que contribua com um centavo. A vida é o bem maior quando a gente
procura entender um pouco do seu sentido. Vejo que o senhor entende
muito dos mistérios que fazem com que as pessoas sejam tão diferentes.
O seu filho aprendeu muitos dos seus ensinamentos e tem uma capacidade
de desenvolver o seu trabalho e o meu. Será um testemunho do que
acabo de afirmar. Nunca vai esquecer que eu entendi muito bem
a doença que ele tem. Não tenho como curá-lo aqui, mas sei onde
vai encontrar a cura, que vai ser o primeiro passo de sua grande
caminhada. Ele tem sonhos e planos muito claros. Disposição de
luta é o que não lhe vai faltar. O ideal é como o amor. Vence
todos os obstáculos. Chega sempre ao ponto desejado, que está
à frente e ao alcance apenas dos fortes e determinados.
- Doutor, não consigo entender como o senhor fala tanta coisa
a meu respeito, das dificuldades que tenho enfrentado na vida
se nunca nos vimos antes e moramos tão distante.
- Seu Doca, a gente na vida aprende a ver e sentir como são as
pessoas sem ter que perguntar nem ouvir nada a seu respeito. Basta
saber observar.
Ouvi aquela conversa curta, e na minha cabeça ela tomou proporções
incalculáveis. Que tipo de pessoa era aquele velho, tão seguro
de tudo o que falava? Como podia entender e afirmar tantas coisas
que eu tinha presenciado na luta do meu pai? À medida que ele
falava, eu me lembrava de fatos e situações que ele parecia ter
visto e sentido. Como pôde ver e afirmar, com tanta segurança,
que a minha doença estava localizada ali onde eu sentia dor, e
que o resto do corpo estava sadio, apenas sofrendo as conseqüências
da moléstia instalada e restrita à parte superior do pulmão direito?
Como ele sabia que a doença poderia ser confirmada nos centros
médicos indicados naquele pedacinho de papel? Devia estar certo.
Era o que eu, como doente, insistia, e ninguém mais indicado do
que eu mesmo para apontar onde me doía. Saí muito confuso com
o que tinha ouvido do bom velhinho, mas senti reforçada a convicção
que me fazia suportar todo tipo de tratamento sem nenhum resultado
havia mais de um ano: eu achava que não iria morrer. Tinha uma
esperança fanática de que escaparia daquela doença misteriosa
e que estava me consumindo a olhos vistos. É como se estivesse
lutando contra um inimigo perigoso e invisível, mas eu tinha certeza
de que, no último instante, eu lhe passaria uma rasteira e pisaria
em sua goela. Ela ia morrer, e eu ficaria para contar a história.
Ao sair do consultório do dr. Quincas Santana, senti que meu pai
estava aliviado. A conversa do doutor lhe deu muito alento. Muitas
coisas ainda pareciam confusas. Ele também não entendia como aquele
homem simples e impressionante podia falar de coisas que tínhamos
enfrentado na vida como se tivesse presenciado a situação ou participado
dos fatos. Morávamos tão longe. A demarcação da área doente do
meu corpo era uma prova de que ele entendia do que falava. Uma
outra coisa que nos fortalecia era a sua sentença de que a doença
tinha cura e que eu não morreria da enfermidade misteriosa, que
havia sido localizada. Era questão de enfrentar a etapa seguinte:
ir até um centro maior. Como? Não sabíamos, porque custava caro
e meu pai estava sem recursos para me levar a uma daquelas capitais
indicadas. Mas a esperança de sair com vida era muito importante
e nos animava, dava forças para continuarmos a luta sem trégua
iniciada no início de 1951.
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